sábado, 3 de novembro de 2012

Menstruei.
Menstruei e briguei.
Menstruei e chorei.
Menstruei e morri.
Menstruei e ouvi.
Menstruei e dancei.
Menstruei e sorri.
Menstruei e amei.

Engravidei.
Engravidei e escorri.
Engravidei e morri.
Engravidei e dancei.
Engravidei e sorri.
Engravidei e gargalhei.

Pari.

Sou.

O Puerpério



O mar invade com violência. Um mar repleto de amor e com alguns monstrengos flutuando. Eu e meu bebê somos jogados longe pelo mar que bateu no peito e somos arrastados sabe-se lá pra onde. Tento me segurar em alguma coisa, mas não tem mais nada ali. Luto para não levada, e sempre com meu bebê nos braços. Um braço se agita pra nadar, e o outro se contrai dolorido de segurar o bebê. Eu 
olho para ele e ele me devora, me engole inteira e eu me perco no seu corpinho. Ele olha pra mim e eu o devoro com a intenção de devolvê-lo pra minha barriga. Os dias passam, estamos cansados debaixo de toda aquela água. Então me ocorre parar de nadar um pouquinho e só me entregar.Meus braços relaxam e eu seguro meu bebê de leve, deixando ele flutuar também. É gostoso flutuar, a água nos leva pra cima e os monstrengos ficam menores. Vamos relaxados e livres para nos afogar naquele mar de amor. Agora boiamos juntos e às vezes mergulhamos um pouco. Muitas vezes me dá um medo, porque não sei onde estamos, não sei o que fazer, se ficar ou nadar. Mas quando me entrego, tudo fica mais gostoso.

O Parto



Um pouco antes das três da madrugada, eu acordo bem incomodada, com dores na bacia e na barriga, como de costume nas últimas semanas. Meu intestino já não estava no seu normal há muito tempo, então eu achei que fosse dor de barriga e fui ao banheiro. Voltei pra cama pra tentar dormir de novo, mas não conseguia. Então sentei na cama e eis que me sai por entre as pernas uma quantidade de água bem razoável. Sei que não é xixi, só pode ser a bolsa que estourou.
Mas já?! Era a água da vida fluindo pra fora de mim, acontecendo apesar de mim, fazendo sua limpeza, chegando antes pra lavar as escadarias por onde desceria meu filhote.

Acordei meu marido, e ele logo entendeu que o trabalho de parto estava começando. Eu não. Demorei a entender, e fiquei tranquila da vida. Mas o líquido continuou sair e tinha sangue, estava rosadinho. Me preocupei e liguei pra parteira, ela me tranquilizou e me falou pra dormir o que eu pudesse, ou descansar, que me ligaria umas 8h. Não consegui dormir, fiquei deitada pensando se eu teria mesmo meu bebê naquele dia. Era claro como água que meu trabalho de parto começou, mas pra mim não. Então só fui seguindo o caminho do meu corpo. A parteira chegou na minha casa umas 9h e ficamos lá conversando e rindo, falando bobagens. Eu comia, bebia, sentada na bola com uma fraldinha pra aparar o líquido. Rebolava um pouquinho e sentia uma cólica tranquila, de tempos em tempos. Tentávamos contar o intervalo das contrações, mas eu nem estava muito afim. Queria mais era ficar ali rebolando. Era dia de faxina em casa, e minha mãe foi chamada pra fazer um almoço. Eu estava muito grata, principalmente por que minha mãe mais uma vez me deu uma prova de amor fazendo só o que eu pedi durante o parto, mas queria as duas fora de casa o mais rápido possível. Elas se foram e a parteira recomendou umas caminhadas.

Fomos caminhar eu e meu amado, na nossa rua. Que delícia! Então nosso bebê está chegando, meu amor?! Nossa, que coisa boa! Já era depois do almoço, estava quente e foi um momento tão bom, eu sentia dor e agachava no meio da rua, algumas pessoas passavam e a gente ali no momento, o tempo parado, o amor preenchendo todos os espaços.

Voltamos pra casa e depois e muita água, alguma comida e uns xixis, a parteira recomendou outra caminhada. Aí o bicho pegou, a dor aumentou incrivelmente de uma contração pra outra, e a gente não dava dois passos e vinha outra contração. Começou a ficar sério. Então voltamos pra casa, a essa hora a doula já tinha chegado. Eu cheguei e disse: “começou a ficar muito sexual, tivemos que voltar”. É por que eu gemia como se tivesse fazendo um sexo bem gostoso. Gemia de dor, mas era um som de prazer e de entrega. Pensando agora, eu não antecipei nada na minha cabeça, vivi cada momento do parto como se fosse só aquilo. Não fiquei pensando no que viria a seguir. Isso foi uma benção!

A partir daí, umas caminhadas no corredor, a dor se intensificando, fomos pro quarto, massagens, bola, gemidos, e então fui-me embora pra partolândia! Lá é igual aqui, só que com presença no corpo. É uma voz bem alta: “eu estou aqui, agora, no meu corpo”. E pra mim, doeu como eu nunca imaginei. Meu corpo se abria além dos limites que eu poderia supor. Sou muito pequena para a força que a natureza tem. Meu corpo se abriu como um terremoto racha uma montanha no meio, como a água furiosa da enchente arrasta pedras e troncos pro rio, devasta cidades inteiras e quebra barcos ao meio. Claro que isso me assustou, e eu tentava me concentrar ali na minha vagina se abrindo, para não atrapalhar o trabalho que não era meu. Meu filho, guerreiro, vinha fazendo seu trabalho junto comigo, se movimentando como deveria ser, chegando como era pra chegar, abrindo minha bacia, labutando nas minhas entranhas, a cabeça apertada, a cara amassada na minha vagina. Ele veio rápido, mas pra mim, na partolândia, era um tempo sem contagem, era dor e foco. A equipe que cuidou de mim e acompanhou o parto me permitiu ser e vibrar aquilo que eu sentia. Meu amor estava sempre ali, corajoso e masculino como nunca, mas passivo. Eu repetia tudo o que a parteira falava que podia me ajudar, repetia em voz alta pra mim mesma, e dançava aquela dança terrível, louca, interminável. Eu disse que ia morrer, eu me desesperei querendo ir embora dali, mas eu pensava, lá no fundo do meu coração, tinha uma voz calma que me dizia “só vou sair daqui com meu bebê nos braços”. Como a parteira me guiou, fui além do meu conforto, dos meus limites e pari! Gemi, gritei, urrei, e pari. Então é assim que meu feminino faz, parece fraco, parece escandaloso, sexual e louco, e no final (ou no começo), dá a luz. Por que parece que foi uma luz que saiu da minha vagina quando eu vi meu filho. Tudo passou. Era o bebê mais lindo da face da terra, era um bebê, o nosso bebê! Olha meu amor, é o Pedro! Meu marido ali atrás de mim, me dando suporte nas pernas pra parir, como um companheiro diamantino!
 
A parteira percebeu que minha placenta tinha descolado e puxou pelo cordão. Saiu inteira, linda, com um cordão forte que o pai cortou. A equipe (parteira, assistente e doula) ficou lá com a gente, cuidou de mim, cuidou do Pedro, cuidou da bagunça, do novo pai. O Pedro nasceu às 18h42. Meu períneo saiu íntegro, o que me deu uma felicidade imensa. E ficou bem inchado, parecendo uma flor aberta, uma rosa cinza no meio das pernas, ardida e dolorida. Minha barriga flácida e meu períneo sangrando ficaram ali me lembrando do que a natureza é capaz, do que meu corpo faz por que é assim que são as coisas, é assim que um ser nasce. 

Nos primeiros dias depois do parto eu não pensei nada. Depois pensei que eu era fraca por ter gritado tanto, por ter dito que ia morrer, e por ter me perdido dentro da partolândia com medo em alguns momentos. Depois percebi que quem pari é uma força feminina tão forte que temos a oportunidade de vê-la poucas vezes na vida se não permitirmos que ela se manifeste da forma que é. A minha é assim, eu aceito com gratidão. Depois me achei o máximo, corajosa, focada, maravilhosa e linda, por que pari! EU PARI MEU FILHO! 

Agora sinto gratidão, me sinto irmã de todas as mães, ligadas pelo coração. A Deusa Mãe estava no meu parto, no canto do quarto manifestada como Nossa Senhora e sua grandiosidade me deu a certeza de que eu sabia parir. Então no meio do parto me lembro de ter dito: "eu sei fazer isso". Que poderoso! Quanta bênção. 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Mutiladas

                            




A mutilação feminina acontece principalmente em sociedades africanas que acreditam que retirando o clitóris, e muitas vezes os lábios e grandes lábios da vagina da mulher, esta se torna pura, e só assim é que ela pode casar e ter uma vida normal em sociedade. As meninas são submetidas a esta mutilação genital geralmente muito cedo, e no lugar de seus órgãos sexuais fica apenas uma cicatriz, pois as feridas são costuradas juntas para se fecharem. Ao final fica um pequeno buraco para que elas possam menstruar e urinar. Depois do casamento, o marido deve pegar uma navalha e ‘abrir a mulher’, cortando sua cicatriz antiga, para assim poder ter relações sexuais com ela.

Ouvindo isso, como mulher, me sobe um sentimento de revolta e estranhamento profundos. As perguntas que me assombram sem que venha uma resposta para acalmá-las são por que isso é feito com as mulheres de lá, que tipo de cultura mutila os órgãos sexuais de suas mulheres, qual a base de um pensamento social que acredita que o sexo de uma mulher deve ser tratado com tanto desrespeito, como se fosse um objeto ruim, como se não fizesse parte de uma pessoa, de uma história biológica, pessoal, psicológica? Estas mulheres não têm escolha, ninguém pergunta o que elas acham, elas não se levantam para defender suas vaginas, ninguém escuta o grito de dor de uma mulher mutilada? Dor de alma, dor de ser mulher, dor de um corte seco bem naquilo que as constitui, que as diferencia, dor na garganta de um grito preso, sem saída.

Que medo é este da vagina, que monstro sai do meio das pernas de uma mulher que precisa ser sacrificado, costurado, calado, domado, possuído?

Enquanto estas perguntas atordoam meu pensamento, eu passo os olhos, como faço desde que me soube da ‘humanização do parto’, em artigos e reflexões científicas e pessoais sobre violência obstétrica. Então ecoa mais forte no meu ser, bem perto de mim, as palavras “mutilação genital feminina”. Todas as mulheres que eu conheço que pariram seus filhos nos hospitais sofreram episiotomia. Todas. No momento do parto, é feito um corte na vagina da mulher, que pode ser em direção ao ânus, em direção à perna ou diagonal, em direção aos glúteos. Este corte atinge o tecido externo da vagina e também a mucosa interna. Geralmente, quando ocorre a passagem do bebê, o corte que inicialmente é pequeno, rasga e pode ficar longo e profundo em direção ao ânus, ou ao bumbum da mulher. É preciso costurar após o parto, e ele pode deixar uma cicatriz interna, para dentro da vagina e continuar esta cicatriz até o ânus, a perna ou ao bumbum da mulher. E isso é feito como rotina desnecessariamente. Quer dizer que se essa mutilação genital não for realizada no momento do parto, o bebê passa pela vagina sem fazer nenhum corte, ou fazendo uma laceração natural geralmente superficial e menor do que o corte mutilador. A necessidade de fazer um corte artificial no momento da passagem do bebê pela vagina pode existir, mas é raro. Não justifica, não explica o fato de que todas as mulheres que eu conheço que pariram seus filhos em hospitais tenham suas vaginas mutiladas, cicatrizadas, marcadas pelo susto e pela dor, bem na hora de trazer ao mundo suas preciosas jóias, os frutos de seus sagrados ventres, de suas benditas barrigas volumosas.     


Então as perguntas voltam a assombrar meus sonhos, meu coração, minha alma, aquela que em mim sente a dor de todas nós, que em mim sente cada mutilação em cada vagina, cada ponto, cada deformação deixada ali, por nada. As mesmas perguntas que já tinha me feito quando ouvi falar da mutilação feminina na África. A mesma dor que senti quando, no filme “Flor do Deserto”, a linda Waris Dirie percebe, olhando a vagina íntegra da sua amiga inglesa, que não era pra ter doído tanto ser mulher.

Não sou tão estúpida a ponto de dizer que retirar toda a vulva e deixar apenas uma cicatriz, muitas vezes através da navalha suja em um lugar sem nenhuma ou quase nenhuma assistência médica é a mesma coisa que sofrer um corte na vagina dentro do hospital. Mas ambas as violências são contra nossos órgãos sexuais, são violências contra a mulher, contra o símbolo máximo do ‘ser mulher’ e se transformam em cicatriz dolorosa na nossa alma, no nosso grito surdo, no nosso desconhecimento de que não é pra doer tanto ser mulher.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Segunda Vermelha: Menstruação é poder


                
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A maioria das pessoas tem a mesma ideia vindo à mente quando se pensa em menstruação e não é uma coisa boa, mas sempre associada ao sofrimento. O documentário “La luna em ti” mostra que a menstruação como uma coisa ruim nos é ensinada e compartilhada desde a infância. Isso quer dizer que antes de nós mulheres chegarmos a ela e termos a nossa própria experiência, já nos foi vendido e carimbado que vamos inevitavelmente sofrer com dores e muito incômodo. Já nos foi ensinado que não é pra falar sobre o assunto por aí, e que não devemos deixar ninguém perceber quando estivermos menstruadas.
Pior do que isso, ou tão ruim quanto, é nunca ter conversado com ninguém sobre menstruação quando somos crianças. E isso não é raro. Pela conversa com as amigas, poucas tiveram um papo franco com a mãe, irmã ou qualquer referência feminina mais velha sobre menstruação e sexo. Não posso imaginar por que os educadores não diriam a uma menina que ela vai menstruar e o que isso significa, pois na minha experiência sempre tive minha mãe, aberta a conversar qualquer assunto e interessada em me explicar o que ela podia sobre a sexualidade feminina (obrigada, mamis!).
Sim, menstruação é parte da sexualidade, menstruação é sexo. É parte exclusivamente da sexualidade feminina, como gravidez, parto e menopausa. Tudo isso é sexo para nós. É uma violência tratar destes acontecimentos como se fossem doenças incômodas da mulher, e como se fossem eventos isolados entre si. Seguimos vivendo com a cara pra cima, esperando que uma dessas coisas aconteça para que a gente possa correr no ginecologista pegar remédio, cirurgia, hormônios, dicas, equipamentos, todo o aparato necessário para se livrar da dor e do incômodo de ser mulher.
E se não fosse assim? E se a sexualidade feminina fosse respeitada e olhada como uma coisa não apenas normal, mas sagrada? Posso contar o que aconteceu comigo quando aprendi a me ver como uma deusa e com toda sacralidade.

Eu cresci vendo minha mãe se contorcer na cama de cólica e sangrar o bastante para dormir com dois absorventes grandes, e ainda vazar sangue. Menstruei cedo, com 10 anos, e tive vários problemas, sempre com TPM e cólicas muito fortes. Mal sabia eu que estava sendo abençoada, e não sacrificada por ser mulher, a “mensageira do pecado” (desserviços do catolicismo...) .
Aos 27 anos, me entupindo de anticoncepcional há 10 anos sem pausas e menstruando 10 dias por mês com muita cólica e muita raiva disso, eu comecei a tentar pensar diferente. Me lembrei das coisas que eu andava lendo, de que a mulher e seu corpo têm uma sabedoria que foi por muito tempo silenciada, e subutilizada, subestimada, por causa do domínio da energia masculina no mundo, nos rituais e nas religiões entre outros setores da cultura e da sociedade. Então nós mulheres temos poder e responsabilidade no resgate do feminino.   
E a menstruação, que é uma coisa natural que o corpo faz sozinho, e é só feminino, deve querer falar de alguma coisa relacionada a este poder do feminino, deve ser um momento importante, já que se repete tanto. Aí fui vendo que sentimento que a chegada da menstruação me trazia. E vi que era tipo um luto, então pensei que talvez a menstruação fosse a morte. Mas a gente aprende a morte como sendo uma coisa horrível, e na verdade é uma oportunidade de arar a terra e plantar outras coisas, de poder criar de novo, o novo. A morte é muitas vezes necessária para que possamos ir em frente. É uma oportunidade de renascimento. Então nessa perspectiva li meus livros de tarot, dei uma olhada na carta da morte e decidi que eu ia me livrar de todos os pensamentos que me incomodavam, ia me recolher ali no meu xixi e enquanto o sangue gotejava no vaso, fui imaginando essas coisas indo embora, que eram seu destino. Aí nesse mesmo dia, que era o 3o dia da menstruação, ela parou. Suspendeu, parou de sair sangue à noite. Assim, sem dar nem uma explicação ela foi-se. Parece besteira, mas eu fiquei de estupefata!
No final de semana seguinte fui me encontrar com as deusas do meu grupo de doulas, muitas delas no caminho de retomar este poder do feminino há algum tempo. Então uma delas me falou que estava menstruada e falou assim: “eu adoro minha menstruação!”. Eu nunca tinha escutado isso em toda a minha vida! Ela disse isso que eu cheguei à conclusão sozinha, de que era uma oportunidade que só nos mulheres temos, abençoadamente, todo mês, de nos recolhermos, nos purificarmos e que era mesmo uma bênção. E que ela (e outras do grupo) faziam rituais durante esta fase do mês. Então uma outra disse que a sexualidade dela melhorou muito depois desses rituais, que ela gosta de menstruar na terra, de deixar o sangue gotejar na terra e devolver pra Grande Mãe Terra este sangue sagrado, e cada uma tinha seus rituais que elas mesmas inventaram, mas com muito respeito por este momento, e fazendo uso desta bênção que é a menstruação.
Além de ter ficado chocada com essa outra perspectiva sobre a menstruação, eu fiquei emocionada e tocada profundamente, e resolvi tentar este caminho, achar meu jeito de me relacionar de forma saudável com meu ciclo menstrual, acolhendo a TPM como uma oportunidade de ver meus defeitos escancarados em um espelho gigante e respeitando o sangue que escorre entre as minhas pernas como uma purificação do meu corpo.
 
Depois de andar um pouco neste caminho, o fluxo diminuiu bastante, a TPM foi atenuada, as cólicas praticamente desapareceram e eu me sinto sagrada, abençoada, irmã de todas as mulheres, útero com útero, a gente respira vida. Adoro cada dia mais ser mulher! Cada dia mais Deusas!