sexta-feira, 29 de junho de 2012

Mutiladas

                            




A mutilação feminina acontece principalmente em sociedades africanas que acreditam que retirando o clitóris, e muitas vezes os lábios e grandes lábios da vagina da mulher, esta se torna pura, e só assim é que ela pode casar e ter uma vida normal em sociedade. As meninas são submetidas a esta mutilação genital geralmente muito cedo, e no lugar de seus órgãos sexuais fica apenas uma cicatriz, pois as feridas são costuradas juntas para se fecharem. Ao final fica um pequeno buraco para que elas possam menstruar e urinar. Depois do casamento, o marido deve pegar uma navalha e ‘abrir a mulher’, cortando sua cicatriz antiga, para assim poder ter relações sexuais com ela.

Ouvindo isso, como mulher, me sobe um sentimento de revolta e estranhamento profundos. As perguntas que me assombram sem que venha uma resposta para acalmá-las são por que isso é feito com as mulheres de lá, que tipo de cultura mutila os órgãos sexuais de suas mulheres, qual a base de um pensamento social que acredita que o sexo de uma mulher deve ser tratado com tanto desrespeito, como se fosse um objeto ruim, como se não fizesse parte de uma pessoa, de uma história biológica, pessoal, psicológica? Estas mulheres não têm escolha, ninguém pergunta o que elas acham, elas não se levantam para defender suas vaginas, ninguém escuta o grito de dor de uma mulher mutilada? Dor de alma, dor de ser mulher, dor de um corte seco bem naquilo que as constitui, que as diferencia, dor na garganta de um grito preso, sem saída.

Que medo é este da vagina, que monstro sai do meio das pernas de uma mulher que precisa ser sacrificado, costurado, calado, domado, possuído?

Enquanto estas perguntas atordoam meu pensamento, eu passo os olhos, como faço desde que me soube da ‘humanização do parto’, em artigos e reflexões científicas e pessoais sobre violência obstétrica. Então ecoa mais forte no meu ser, bem perto de mim, as palavras “mutilação genital feminina”. Todas as mulheres que eu conheço que pariram seus filhos nos hospitais sofreram episiotomia. Todas. No momento do parto, é feito um corte na vagina da mulher, que pode ser em direção ao ânus, em direção à perna ou diagonal, em direção aos glúteos. Este corte atinge o tecido externo da vagina e também a mucosa interna. Geralmente, quando ocorre a passagem do bebê, o corte que inicialmente é pequeno, rasga e pode ficar longo e profundo em direção ao ânus, ou ao bumbum da mulher. É preciso costurar após o parto, e ele pode deixar uma cicatriz interna, para dentro da vagina e continuar esta cicatriz até o ânus, a perna ou ao bumbum da mulher. E isso é feito como rotina desnecessariamente. Quer dizer que se essa mutilação genital não for realizada no momento do parto, o bebê passa pela vagina sem fazer nenhum corte, ou fazendo uma laceração natural geralmente superficial e menor do que o corte mutilador. A necessidade de fazer um corte artificial no momento da passagem do bebê pela vagina pode existir, mas é raro. Não justifica, não explica o fato de que todas as mulheres que eu conheço que pariram seus filhos em hospitais tenham suas vaginas mutiladas, cicatrizadas, marcadas pelo susto e pela dor, bem na hora de trazer ao mundo suas preciosas jóias, os frutos de seus sagrados ventres, de suas benditas barrigas volumosas.     


Então as perguntas voltam a assombrar meus sonhos, meu coração, minha alma, aquela que em mim sente a dor de todas nós, que em mim sente cada mutilação em cada vagina, cada ponto, cada deformação deixada ali, por nada. As mesmas perguntas que já tinha me feito quando ouvi falar da mutilação feminina na África. A mesma dor que senti quando, no filme “Flor do Deserto”, a linda Waris Dirie percebe, olhando a vagina íntegra da sua amiga inglesa, que não era pra ter doído tanto ser mulher.

Não sou tão estúpida a ponto de dizer que retirar toda a vulva e deixar apenas uma cicatriz, muitas vezes através da navalha suja em um lugar sem nenhuma ou quase nenhuma assistência médica é a mesma coisa que sofrer um corte na vagina dentro do hospital. Mas ambas as violências são contra nossos órgãos sexuais, são violências contra a mulher, contra o símbolo máximo do ‘ser mulher’ e se transformam em cicatriz dolorosa na nossa alma, no nosso grito surdo, no nosso desconhecimento de que não é pra doer tanto ser mulher.

Um comentário:

  1. Partilho de seus conceitos, partilho de seus pensamentos; todas as vezes que leio, que ouço ou que me recordo desta brutalidade animalesca comungo de um vazio sem igual, de uma tristeza descabida e de um luto que se aflora sobre mim, e treme meus olhos d'agua.

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